Senti o sol a aquecer-me o corpo. Levantei a cabeça. Estava a nascer o dia, o sol espreitava agora entre as montanhas. Era maravilhoso. Vendo a paisagem verdejante, ainda a pingar orvalho, que reflectia os raios de sol… simplesmente maravilhoso. Por breves momentos quase esqueci quão terrível fora a minha vida até aqui. Quase. Assim que me permitia um momento de felicidade, o passado trespassava a minha mente como uma lança, como a dizer que tudo pode acabar, assim como começou.
A minha vida, não me lembro bem quando e onde começou, porque quando dei pela minha existência, já habitava aquele local inóspito. Vivíamos ao monte, comíamos, dormíamos e defecávamos no mesmo local. Quando não havia comida que chegasse para todos, havia os que comiam os dejectos. Os deles, e os dos demais. Nunca consegui fazê-lo. Talvez por esse motivo nunca tenha atingido um peso considerável. Creio que a vida nos aviários não é agradável, mas no nosso era verdadeiramente deplorável. A companhia não era das melhores. Mas, eu também não me considerava boa companhia. Não me lembro de nenhum companheiro que não conhecesse desde que me conheço. A nossa existência resumia-se ao corredor. Não tínhamos espaço para nos mexermos. A minha vida consistia em comer, sentar, dormir e sonhar. Sonhava muito. Creio que sonhar era o que me fazia resistir, o que me fazia chegar ao fim de um dia e começar outro. Isto, quando conseguia fazer essa distinção. Os meus sonhos eram fantásticos, claro, mas retratavam a realidade que conhecia. O aviário, apenas o aviário. Num dia sonhava que os corredores estavam quase vazios e eu conseguia andar e saltitar. Noutro, conseguia raspar a terra. Era uma alegria. Mas depois acordava. Nunca tinha visto um dia a nascer. No aviário havia o momento da luz e o da escuridão. Não fazia ideia como se passava de um para o outro.
Quando acordava, ficava tristíssima. Só desejava voltar a dormir, mas era impossível. O barulho era ensurdecedor. As discussões, os confrontos. Sempre que chegava a comida, começava. Todos se levantavam e se dirigiam aos comedouros. Obviamente que o espaço não chegava para todos. Alguns companheiros que tinham migrado entre corredores, na tentativa de encontrar algo mais amplo, contavam que existiam corredores organizados hierarquicamente, onde os mais velhos e os mais novos se alimentavam primeiro, com locais definidos para dormir, para as latrinas, enfim. O nosso não. O nosso corredor era anarquista. Não existiam regras de espécie nenhuma. Cada um fazia como queria e como lhe convinha. Nem todos conseguíamos comer todos os dias. Havia os que lutavam pela comida, e outros como eu, que simplesmente deixavam passar. Amanhã, como, pensava. Mas os amanhãs nunca chegavam. Quanto mais fracos ficávamos, mais impossível se tornava a tarefa de nos alimentarmos. Aqueles que optavam por comer os dejectos tornavam-se completamente alucinados. Faziam movimentos estranhos com a cabeça, outros fitavam o chão. Eu só queria dormir e sonhar. Queria sonhar que não estava ali, mas não sabia o que poderia haver para além daquele sítio. Como não me alimentava, fui enfraquecendo, as penas começaram a cair. Fiquei doente. Não fui só eu, outros companheiros também adoeceram. Já não tínhamos sequer força nas pernas para nos levantarmos. Eu só desejava dormir e sonhar, se não voltasse a acordar, não havia problema. Estava melhor nos sonhos, tinha muita comida, espaço e sentia-me limpa.
1 comentários:
Está muito boa esta introdução, rica em detalhes e pormenores que nos faz imaginar através das palavras.
Como sou a primeira a comentar e não te querendo puxar a lágrima no canto do olho, desejo que este espaço tenha sucesso com muitas histórias hilariantes à la Seixas. Nem que seja para daqui a uns tempos recordar com umas belas gargalhadas...
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