Há Quinta

Aparição

«Sento-me aqui nesta sala vazia e relembro. Uma lua quente de Verão entra pela varanda, ilumina uma jarra de flores sobre a mesa. Olho essa jarra, e escuto o indício de um rumor de vida, o sinal obscuro de uma memória de origens. No chão da velha casa a água da lua fascina-me. Tento, há quantos anos, vencer a dureza dos dias, das ideias solidificadas, a espessura dos hábitos, que me constrange e tranquiliza. Tento descobrir a face última das coisas e ler aí a minha verdade perfeita Mas tudo esquece tão cedo, tudo é tão cedo inacessível. Nesta casa enorme e deserta, nesta noite ofegante, neste silêncio de estalactites, a lua sabe a minha voz primordial.» FERREIRA, Vergílio - Aparição. Bertrand , 2003. ISBN 972-25-0251-4

Julieta


Chegamos a um terreiro onde estavam mais galinhas e frangos, alinhados. Aparentemente faltávamos nós, o fez com que tudo se atrasasse, nomeadamente o almoço. Este atraso, ao qual éramos totalmente alheios, dado que afinal a “voz” não nos tinha deixado no local certo, valeu-nos umas boas inimizades.

Uma voz aguda captou-me a atenção. Uma galinha castanha acenava na nossa direcção. Deu-nos as boas vindas. Já devia ter almoçado, era a única explicação para aquela boa disposição. Quando reparei, já não havia sinal dos gansos. Estava tão distraída com os comentários corrosivos dos nossos parceiros de fila, e por oposição com o excessivo bom humor que a galinha castanha tinha, que nem dei pela sua retirada. Bolas. Quando voltei à realidade, reparei que a galinha castanha estava a discursar. Chamava-se Julieta, era a responsável por mostrar o local aos recém-chegados, e explicar um pouco da rotina e especialmente da hierarquia da quinta. Novamente tive de fazer um esforço por parecer minimamente interessada, e estava. Não queria parecer ingrata, uma vez que não o era, agradecia do fundo do coração esta oportunidade que me era dada, de viver numa quinta, e conhecer uma realidade tão diferente da que conheci no aviário, mas não conseguia deixar de pensar naquele ganso, enorme, cinzento e sisudo.

Julieta pediu-nos para aguardar um pouco e entrou por uma portinhola. Passados alguns minutos saíram três galinhas, juntamente com a Julieta. Havia uma, cuja cor era igual à de Julieta, mas tinha a particularidade de não ter penas no pescoço. As outras duas, tinham penas no pescoço, e eram de uma cor…indefinida. Pareciam pretas, mas ao mesmo tempo, azuis ou verdes, não consegui perceber. O que percebi é que se moviam exactamente da mesma maneira, como se uma vara invisível as atravessasse às três. Uma preta de cada lado, ao centro a castanha.

A caminho


A velocidade era a meu ver, exagerada. Não nos mexíamos havia bastante tempo, estávamos entorpecidos, mas francamente, seguíamos tão apertados no meio dos gansos, que mesmo que quiséssemos cair, não corríamos esse risco.
Embora tentasse seguir cegamente os gansos, era um esforço demasiadamente grande para mim, ignorar o que estava para além dos gansos, não pude deixar de ir observando o que passava por nós, embora ao mesmo tempo tentasse concentrar-me nos gansos. Complicado.

A azáfama era grande, todos os tipos de animais circulavam por ali, uns para um lado, outros para o outro. Alguns paravam à nossa frente e observavam-nos, mas logo seguiam caminho, caso contrário, eram atropelados pela nossa comitiva. Não fazia a mínima ideia do que fazer. Realmente se não tivesse como único objectivo seguir os gansos, estaria totalmente perdida. Olhei para um lado e depois para o outro, mas nada me era familiar. Decidi prestar atenção ao que os animais diziam, podia ser que alguns da minha espécie, mencionassem algo minimamente familiar. A algaraviada dificultava a concentração, mas fiz um esforço. Passaram por nós, duas jovens galinhas a falar da hora de almoço que se aproximava. Dos gansos, nem uma palavra. Uma das minhas parceiras, uma galinha que aparentava ter mais idade que as restantes ainda tentou falar com eles, mas ignoraram-na completamente. Eram dos mais malcriados que conheci até ao momento, este gansos. Enchi-me de coragem e olhei-os primeiro de soslaio, mas à minha esquerda encontrava-se o maior ganso que vira até hoje. Bem, contando com estes cinco, na realidade só tinha visto outro, quando estava no quintal da recuperação, mas de todos este era verdadeiramente grande. Virei a cabeça literalmente para o lado para o admirar. Ele percebeu e olhou-me. Pensei que morria ali mesmo. Senti as pernas a ficarem bambas, um arrepio percorreu o meu corpo, sentia um frenesim a assaltar-me juntamente com um pânico terrível. Era uma ave linda, linda, linda…não consigo arranjar palavras para a descrever. Era verdadeiramente majestoso. O ganso abriu as asas e gritou exasperado! «Vira-te para a frente!» Sei que o meu corpo se mexeu muito antes de a minha cabeça lhe dar tal instrução. Eu continuava perplexa, a admirá-lo, mas virei-me para a frente, como ele ordenou. Aliás, naquele momento acho que teria executado qualquer instrução que ele me desse.