Há Quinta

Aparição

«Sento-me aqui nesta sala vazia e relembro. Uma lua quente de Verão entra pela varanda, ilumina uma jarra de flores sobre a mesa. Olho essa jarra, e escuto o indício de um rumor de vida, o sinal obscuro de uma memória de origens. No chão da velha casa a água da lua fascina-me. Tento, há quantos anos, vencer a dureza dos dias, das ideias solidificadas, a espessura dos hábitos, que me constrange e tranquiliza. Tento descobrir a face última das coisas e ler aí a minha verdade perfeita Mas tudo esquece tão cedo, tudo é tão cedo inacessível. Nesta casa enorme e deserta, nesta noite ofegante, neste silêncio de estalactites, a lua sabe a minha voz primordial.» FERREIRA, Vergílio - Aparição. Bertrand , 2003. ISBN 972-25-0251-4

A Quinta


Mantive os olhos firmemente fechados. Não queria ver. Senti pegarem na gaiola onde me encontrava, tudo abanava. Eu era atirada contra as paredes da gaiola até que resolvi fincar as patas no chão gradeado. Terão de fazer melhor do que isto para me fazerem abrir os olhos novamente. Já não me assusto facilmente, ou, pelo menos dito assim quase me fazia acreditar, pensei. De repente tudo parou, e, embora a curiosidade quase comesse a galinha, mantive-me firme. Não abri os olhos. Mas, uma voz fez-me abrir os olhos…Chamava-me docemente. Não resisti e olhei “a voz” nos olhos. Abriu a gaiola, ajudou-me a sair e pronto. Procurei o aviário, os corredores, nada. A “voz” fez-me uma festa, sorriu e levou a gaiola. Fiquei ali, sem saber para onde ir…Parei de pensar, não adiantava. Decidi observar o que me observava. Não estava só. Éramos quatro, que a “voz” tinha deixado ali, mas aparentemente nenhum de nós sabia o que fazer. Estava muito compenetrada nesta minha missão de observação, quando levei um ligeiro encontrão, e uma voz gritou «sigam-me!». Não prestei muita atenção, embora o encontrão me tivesse deixado um pouco alterada. Novamente a voz disse «sigam-me», o tom autoritário imobilizou-me. Só podia ser para nós, pensei. Olhei para trás, e vi um bando de gansos. Não demorou muito a percebermos o que havia a fazer. O bando de gansos cercou-nos, e o que tomava a dianteira vociferou novamente: «sigam-me!». Juntámo-nos dentro do círculo que os gansos formaram e seguimos o da frente.

Mudanças


Queria ficar ali para sempre, mas sabia que não era possível. Aliás, já tinham mencionado que a mudança era para breve, pelo que, eu vivia cada dia como se fosse o último. Em breve estaria de volta ao aviário, e calculava que a minha vida não estendesse por muito mais tempo, uma vez de regresso. A Pombinha tentava explicar o mais que podia, no tempo que ainda nos restava. Apresentou-me os outros animais, as outras “aves de capoeira”, chamou-lhes. Não pretendia que eu criasse laços de amizade com este pessoal, mas caso fosse transferida para uma quinta, em vez de um aviário, já sabia o que esperar.

Todos os dias, vinham buscar-me, para ser inspeccionada, e levar uma injecção. Todos os dias me despedia da Pombinha, porque não sabia se regressava. Até que realmente, um dia, não regressei. Fui colocada numa gaiola, em cima de uma carrinha de caixa aberta, juntamente com outras gaiolas. Apenas algumas tinham animais. A maioria estava vazia. Grande parte da viagem foi feita de noite. A noite, creio que foi a primeira noite em que vivi a experiência da noite. O céu estava escuro, cheio de luzinhas brilhantes. Não queria perder nada, mas o cansaço venceu-me. Adormeci. Apenas quando senti a luz a emergir, o que agora já sabia ser o sol a nascer, abri os olhos.

A paisagem não parecia real, parecia que uma história da Pombinha tinha-me escapado da imaginação. Estava do lado de fora. Fiquei confusa. Tudo o que nos rodeava tinha uma luz amarelo torrada e verde, tudo brilhava, A luz e brilho eram tão intensos, que mal conseguia manter os olhos abertos, ao fechá-los pouco mudava.

Convalescença e...


Não sei quantos anos tinha a Pombinha, nem há quantos estava no aviário. Perguntei-lhe uma vez, mas ela não soube responder. O tempo não era importante enquanto viveu na quinta. E agora, um momento no aviário era equivalente à postura de pelo menos cinco ovos na quinta. Havia, recentemente, deixado de o fazer. Como era velha demais para ser vendida para abate, foi deixada numa gaiola, com alguma ração e água. De quando em vez, alguém se lembrava de mudar a água e colocar comida, mas quando o faziam, ela estava tão fraca, que quase não tinha forças para comer. A sujidade era tanta à sua volta, que ainda dificultava mais o acesso à comida. Eu desistiria, mas a Pombinha não. Fazia de cada ida à comida uma missão. Sabia que tinha de comer e beber para se manter viva, e era isso que fazia. Ou conseguia comer, ou morreria a tentar fazê-lo. Mas desistir nunca. Em memória de seus pais. Foi nessa gaiola que a encontraram, quase sem vida. E só devido à sua determinação, posso agora enfatizá-lo: quase.

Estávamos bastante melhores. Um dia enquanto me observavam, ouvi-os. Queriam levar-nos para outro local, mas não percebi de que tipo. Apenas pensei que tinha acabado tudo. Ia regressar ao aviário. E agora tudo iria ser diferente, mais doloroso, uma vez que agora sabia que existiam lugares onde uma galinha como eu podia ser feliz. Bom, ao menos traria diversidade aos meus sonhos, tentei convencer-me.

Os dias sucediam-se. Estávamos cada vez melhor. Estávamos mais fortes, mais alegres, vendíamos saúde. Quem diria. A Pombinha contava-me a sua vida, como se fizesse parte de uma missão transmitir-me algum conhecimento sobre o mundo lá fora. Foi assim que não fiquei assustada quando pus o meu primeiro ovo. Comecei por ter muitas dores. Num momento tinha calor, no outro estava gelada. A Pombinha ajudou-me em todo o processo. Explicou-me o que estava a acontecer, e o que iria acontecer. Posso dizer que se não fosse assim teria morrido de susto. Foi muito difícil. Sentir o ovo a formar-se dentro de mim, quase 1 dia e parte da noite, quando chegou a madrugada não aguentava mais. Tinham de me tirar aquilo! Mais uma vez valeu-me a Pombinha. É que saber o que esperar e viver a experiência, são duas coisas distintas. Pensava que estava preparada, mas não estou. Mais uma vez gritei: Tirem-me isto! A Pombinha entoou uma melodia para me acalmar. Pediu-me para respirar calmamente e fazer força quando sentisse que não aguentava mais. Está na hora, pensei. Fiz força, muita força, e o ovo saiu. Deixei-me cair no chão. A Pombinha obrigou-me a levantar. Deveria andar um pouco depois da expulsão do ovo. Assim fiz. Andei à volta da gaiola. Senti-me a coisa mais estúpida de todos os tempos.

Quando ouviram barulho, aqueles que cuidavam de nós, vieram ver o que se passava. Viram o ovo e deram pulos de alegria. Confesso que não partilhei do entusiasmo deles. Saber que de agora em diante ia passar por aquela experiência quase todos os dias, deixava-me furiosa. Nem no meu corpo mandava! Mais uma vez, valeu-me a Pombinha. Explicou-me que aquela sensação só durava nas primeiras posturas, depois seria tão natural como andar ou comer. Levaram o ovo. O meu primeiro. Ainda bem, o que faria eu com ele? Mas não pude evitar sentir um aperto no meu coração. Afinal era um pedaço de mim que eles levavam…e para onde? Demorou algum tempo até a Pombinha explicar-me porque motivo os humanos queriam os nossos ovos. Confesso que esperava algo do género. Animais!
Passado algum tempo, deixamos de passar o dia inteiro na gaiola. Só nos colocavam lá para dormir. Durante o dia ficávamos num quintal, pequeno mas soalheiro. Era agradável. E ajudou a visualizar alguns dos ensinamentos da Pombinha. As cores…As cores deixavam-se sem palavras. O verde da vegetação, o azul do céu, tudo era novo. Os sons de outros animais iguais a nós, diferentes de nós. Parecia uma tontinha de bico aberto a olhar em à volta. Sentia-me eufórica, e parva, ao mesmo tempo.

Pombinha


Quando nasceu, tinha uma penugem de um amarelo quase branco, o que fazia lembrar uma pomba. Daí a sua mãe ter-lhe chamado Pombinha. Viviam num sítio a que chamou de quinta. Com um pai, uma mãe e vários irmãos. Embora existissem outros animais na quinta, eles eram os únicos da sua espécie. Brincavam o dia todo, esgravatavam a terra, apanhavam sol, abrigavam-se da chuva, nunca lhes faltou comida, e tinham espaço, muito espaço.

Tentei imaginar, mas era demais. Não conseguia imaginar o espaço, quanto mais o sol e a chuva e outros animais diferentes a conviverem juntos. Senti que a minha existência era algo entorpecida até este momento. Até me falarem de algo que existia, embora fosse muito difícil materializar as palavras na minha imaginação. Como podia fazê-lo quando apenas conhecia o corredor? Era surreal. Às vezes ainda pensava que a Pombinha tinha perdido o juízo de vez. As histórias que ela contava não passavam de histórias. Outras vezes, era mais fácil acreditar. Porque não? Ao menos havia algo que me alegrava o espírito. A história seguinte. Porque havia sempre mais uma.

Um dia, tudo mudou na vida de Pombinha. Os pais já tinham falecido, alguns irmãos também. Tinham apanhado uma gripe. Apenas ela e duas irmãs sobreviveram. Continuaram com a rotina que os pais lhes tinham ensinado. Levantavam-se cedo, punham os ovos, tal e qual como se a família estivesse com eles. Certo dia veio um carro branco, com luzes azuis e vermelhas buscar a sua dona. Foi a última vez que a viram. O dono nunca mais foi o mesmo. Desleixou-se, e desleixou a quinta. Elas punham os ovos, mas ninguém os tirava. Começaram a colocar os ovos um pouco por toda a parte, uma vez que os ninhos cheiravam muito mal. Nunca mais foram alimentadas devidamente, comiam aquilo que encontravam e que parecesse minimamente comestível. Um dia, vieram os filhos do dono e levaram-no. A pouco e pouco foram levando os animais, e foi assim que terminou no aviário. Nunca mais viu as suas irmãs, nem sabe o que lhes aconteceu. Como punha bastantes ovos, não estava connosco nos corredores. Mesmo que estivesse, dificilmente teria trocado duas palavras com ela. Nunca as troquei com outros.