Há Quinta

Aparição

«Sento-me aqui nesta sala vazia e relembro. Uma lua quente de Verão entra pela varanda, ilumina uma jarra de flores sobre a mesa. Olho essa jarra, e escuto o indício de um rumor de vida, o sinal obscuro de uma memória de origens. No chão da velha casa a água da lua fascina-me. Tento, há quantos anos, vencer a dureza dos dias, das ideias solidificadas, a espessura dos hábitos, que me constrange e tranquiliza. Tento descobrir a face última das coisas e ler aí a minha verdade perfeita Mas tudo esquece tão cedo, tudo é tão cedo inacessível. Nesta casa enorme e deserta, nesta noite ofegante, neste silêncio de estalactites, a lua sabe a minha voz primordial.» FERREIRA, Vergílio - Aparição. Bertrand , 2003. ISBN 972-25-0251-4

Convalescença e...


Não sei quantos anos tinha a Pombinha, nem há quantos estava no aviário. Perguntei-lhe uma vez, mas ela não soube responder. O tempo não era importante enquanto viveu na quinta. E agora, um momento no aviário era equivalente à postura de pelo menos cinco ovos na quinta. Havia, recentemente, deixado de o fazer. Como era velha demais para ser vendida para abate, foi deixada numa gaiola, com alguma ração e água. De quando em vez, alguém se lembrava de mudar a água e colocar comida, mas quando o faziam, ela estava tão fraca, que quase não tinha forças para comer. A sujidade era tanta à sua volta, que ainda dificultava mais o acesso à comida. Eu desistiria, mas a Pombinha não. Fazia de cada ida à comida uma missão. Sabia que tinha de comer e beber para se manter viva, e era isso que fazia. Ou conseguia comer, ou morreria a tentar fazê-lo. Mas desistir nunca. Em memória de seus pais. Foi nessa gaiola que a encontraram, quase sem vida. E só devido à sua determinação, posso agora enfatizá-lo: quase.

Estávamos bastante melhores. Um dia enquanto me observavam, ouvi-os. Queriam levar-nos para outro local, mas não percebi de que tipo. Apenas pensei que tinha acabado tudo. Ia regressar ao aviário. E agora tudo iria ser diferente, mais doloroso, uma vez que agora sabia que existiam lugares onde uma galinha como eu podia ser feliz. Bom, ao menos traria diversidade aos meus sonhos, tentei convencer-me.

Os dias sucediam-se. Estávamos cada vez melhor. Estávamos mais fortes, mais alegres, vendíamos saúde. Quem diria. A Pombinha contava-me a sua vida, como se fizesse parte de uma missão transmitir-me algum conhecimento sobre o mundo lá fora. Foi assim que não fiquei assustada quando pus o meu primeiro ovo. Comecei por ter muitas dores. Num momento tinha calor, no outro estava gelada. A Pombinha ajudou-me em todo o processo. Explicou-me o que estava a acontecer, e o que iria acontecer. Posso dizer que se não fosse assim teria morrido de susto. Foi muito difícil. Sentir o ovo a formar-se dentro de mim, quase 1 dia e parte da noite, quando chegou a madrugada não aguentava mais. Tinham de me tirar aquilo! Mais uma vez valeu-me a Pombinha. É que saber o que esperar e viver a experiência, são duas coisas distintas. Pensava que estava preparada, mas não estou. Mais uma vez gritei: Tirem-me isto! A Pombinha entoou uma melodia para me acalmar. Pediu-me para respirar calmamente e fazer força quando sentisse que não aguentava mais. Está na hora, pensei. Fiz força, muita força, e o ovo saiu. Deixei-me cair no chão. A Pombinha obrigou-me a levantar. Deveria andar um pouco depois da expulsão do ovo. Assim fiz. Andei à volta da gaiola. Senti-me a coisa mais estúpida de todos os tempos.

Quando ouviram barulho, aqueles que cuidavam de nós, vieram ver o que se passava. Viram o ovo e deram pulos de alegria. Confesso que não partilhei do entusiasmo deles. Saber que de agora em diante ia passar por aquela experiência quase todos os dias, deixava-me furiosa. Nem no meu corpo mandava! Mais uma vez, valeu-me a Pombinha. Explicou-me que aquela sensação só durava nas primeiras posturas, depois seria tão natural como andar ou comer. Levaram o ovo. O meu primeiro. Ainda bem, o que faria eu com ele? Mas não pude evitar sentir um aperto no meu coração. Afinal era um pedaço de mim que eles levavam…e para onde? Demorou algum tempo até a Pombinha explicar-me porque motivo os humanos queriam os nossos ovos. Confesso que esperava algo do género. Animais!
Passado algum tempo, deixamos de passar o dia inteiro na gaiola. Só nos colocavam lá para dormir. Durante o dia ficávamos num quintal, pequeno mas soalheiro. Era agradável. E ajudou a visualizar alguns dos ensinamentos da Pombinha. As cores…As cores deixavam-se sem palavras. O verde da vegetação, o azul do céu, tudo era novo. Os sons de outros animais iguais a nós, diferentes de nós. Parecia uma tontinha de bico aberto a olhar em à volta. Sentia-me eufórica, e parva, ao mesmo tempo.

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